segunda-feira, 30 de julho de 2018

Carta a uma jovem poeta (por Hélio Pellegrino)
"O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa" Hölderlin
No princípio é o sonho. E, depois dele - mas implicando-o, necessariamente -, é o contato, o contraste e o confronto com a estranheza das coisas. O movimento humano se faz da fantasia para a concretude do mundo. Temos que perder o macio inimaginável do sonho, sua diáfana gentileza de pés de lã, para ancorar no concreto. Temos de saltar de pára-quedas, na direção da realidade. Torna-se indispensável, nesta hora, um aparelho minimamente capaz de amortecer o choque contra a terra: tranco fundador. É, porém, ilusório supor que tal passagem possa processar-se sem ruptura - e sem vertigem. Machado de Assis, do alto de sua ironia, garante que é melhor cair das nuvens do que de um terceiro andar. Não estou seguro de que este aforisma possa adequar-se, com propriedade, ao tema que examinamos. Os sonhos não são nuvens, mas a primeira pátria do homem. Cair deles é - literalmente - perder o paraíso, vicissitude com certeza mais dolorosa do que partir uma perna, após a queda de um terceiro pavimento.

O poeta, o ficcionista dão o salto o sonho para o signo compartilhado. Existe, fora de dúvida, um sofrimento na agonia da criação artística, na medida em que ela é um parto - e um nascimento. Pulamos do avião, abandonando o grande bojo narcísico pela aventura de recortar em palavras, imagens e metáforas aquilo que é nosso mistério original. Não obstante, na dor universar desse processo de objetivação, por cujo intermédio o ser humano se eventra, para conhecer-se, o artista fica com a melhor parte. Ele consegue construir um sonho - ou um vôo - dirigido, cujo destino se consuma na obra de arte. O artista conquista e preserva, portanto, sua condição de fazendeiro do ar, permanecendo no território da semiótica - lugar onde o humano se embriaga da insustentável leveza do ser.
As coisas, contudo, se tornam mais torturadas - e tortuosas - quando se trabalha a própria matéria da vida, na tentativa de fazer dela um sonho dirigido. O concreto, fora de nós, é transcendente e, por isto mesmo, terrível. Para segurá-lo - e domá-lo - é preciso abrir a guarda ou, mais precisamente, a brecha por onde a morte entra. O real é o myterium tremendum, brasa viva que nos queima as mãos. O artista, com seu uniforme de amianto, converte as grandes queimadas da montanha em florestas de simbolos que ardem. As palavras promovem, com eficácia, a encantação do mundo. Elas nos ajudam a elucidar o real na medida em que, por afastar-nos dele, nos permite conhecê-lo. A linguagem, em última instância, tece os fios da pertinência ao cosmo. Ela é mediação, acolchoado de presenças ausentes, gentileza do Logos que nos poupa ao grande espanto. Já os místicos, desmesurados essenciais, se aplicam com indormida paixão à tarefa de encarar, no olho, a radiância do real. Eles invocam e convocam, na solidão da noite, o vazio - abolição da linguagem -, para albergar, no centro do vórtice espantoso, a presença inimaginavelmente esplêndida do real - diadema do poder de Deus.
O artista, na sua aventura criadora, não chega a tanto. Ele é mais modesto, enfrenta - sim - o real, mas simbolizado, mediado pelo signo. In hoc signo vinces: com este signo vencerás. O artista se encomenda aos poderes da linguagem, que aponta para o real, ao mesmo tempo que o oculta. O real é o impossível - diz Lacan numa estocada de mestre. Ele é silêncio, êxtase impronunciável, fornalha ardente da paixão de Deus, aterradora e esmagadora. O artista, espécie de santo de segunda mão, fica rasante à carnadura do real, aflorando-o sem deflorá-lo, A partir da proximididade ao coração selvagem da vida, transportado de amoroso espanto, ergue vôo, através da linguagem, no sentido de anunciar, comemorar - e elucidar - a suprema dignidade do real.
O artista, pela palavra, dá notícia da realidade, fala de sua presença, representa-a e, com isto, empalidece - ou amortece - sua desocultação. O místico, ao contrário, pela brecha escancarada e vazia de sua liberdade, abre lugar ao relâmpago do ser, não corroído pela função simbolizadora da linguagem. A palavra é sempre, por um lado, defesa contra o real, defesa legítica - ou legítma defesa. Ela nos permite contemplar as explosões nucleares do Sol, mas com óculos escuros. Quem quiser não usá-los, nesta emergência, corre o risco de ficar cego. Foi, aliás, o que aconteceu a São Paulo, no caminho de Damasco. Ele ficou siderado e fulgurado pela luz da revelação do Real e, perdendo a visão, caiu - literalmente - do cavalo.
Lacan, sucessor da grandeza de Freud, desbravou tais questões com inigualável densidade. Ele nos mostra que, através da função simbolizadora, somos salvos da psicose - e da possibilidade do desastre psíquico. Nos casos de neurose, por exemplo, existe um relacionamento, no inconsciente, de conteúdos mentais já simbolizados ou representados. O neurótico embora possa assustar-se e, até mesmo, aterrorizar-se com seus sonhos, tem sempre o recurso de acordar deles abrindo os olhos, seja literalmente, seja de maneira metafórica, através de sua elucidação interpretativa. Os sonhos são sempre estruturados como linguagem. Eles representam o desejo inconsciente e, na pior das hipóteses, vão surgur à consciência como sintomas.
No caso das psicoses, o problema é estruturalmente diverso. O psicótico tem áreas de sua experiência psíquica que ele não simbolizou, nem recalcou, mas foracluiu, segundo a terminologia lacaniana. O recalque implica uma prévia atividade simbolizadora. Quando esta não existe, o material rejeitado aparece à consciência sob a forma real - não simbólica. A psicose, portanto, é uma impossibilidade de sonhar. Quem canta, seus males espanta - diz o velho brocardo. O sonho é, a seu modo, uma espécie de canção tecida de imagens, que nos salva do excesso de realidade. O psicótico, sem poder onírico, é soterrado por esse excesso e, sob seus escombros, carece de canto, sucumbe ao peso dos próprios males.
O artista - mestre no sonhar e no dizer - escapa esse duro infortúnio. Ele sonha e diz o seu sonho e, nesta medida, ao conferir-lhe o cânon apolíneo da beleza domada, conquista-o, sublima-o, resolve-o. O artista sonha de novo o seu sonho, quando o exprime, e, assim, consegue transformá-lo em canto geral. A arte é sonho dirigido, ofertado à comunhão dos homens, na medida em que paga imposto da palavra para ingressar no circuito do intercâmbio social. O artista, ao modelar o seu sonho, socializa-o, insere-o no mundo, rompe sua abastança autárquica - e narcísica. Arte é sonho compartilhado, comunicado, dialógico. Não resta dúvida , porém, que o artista, ao transpor seu sonho para a linguagem de todos, sofre aí o doloroso impacto da constrição a que o sujeita a ordem do simbólico. As palavras - e, de resto, quaisquer símbolos - são um código e uma álgebra. Elas operam a partir das leis do discurso, através de signos que se põem no lugar das coisas, sem presença delas. Toda arte, portanto, é tingida de ausência, e fala sempre de uma pátria perdida. Toda arte é exílio: canção do exílio. Os poetas - Gonçalves Dias, Baudelaire, Manuel Bandeira - não me deixam mentir.

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