sexta-feira, 31 de julho de 2009

Insanidade na aurora

Cioran e tragédia do existir

Fernando RegoIn memoriam

O raciocínio em Cioran é desenvolvido a partir de situações limites. Na sua composição, são elementos básicos a negatividade, a morte, Deus, a demência e a loucura. Ingredientes que ao se combinarem formam um universo governado pela injustiça e impostura.

Não sem propósito. Cioran refere-se com ternura e admiração a Diógenes (413-324), o que viveu com toda intensidade possível a loucura filosófica. Natural de Sínope - costa do Mar Negro - Diógenes teve como pai Icésio, banqueiro acusado de falso moedeiro juntamente com seu filho, o próprio Diógenes, razão pela qual terminaram ambos - pai e filho - desterrados. No livro Vidas de filósofos mais ilustres, Diógenes Laércio descreve-nos a vida, as ironias profundamente cínicas de Diógenes. Neste texto, tomamos conhecimento de seus ataques a Platão, do seu comportamento sempre à margem do social para melhor demonstrar o quanto depreciava seus concidadãos. Diógenes freqüentava a companhia das prostitutas e dos ladrões, e sorria para seus críticos: "Os médicos andam em companhia dos enfermos e não se contaminam". Da crítica demolidora de Diógenes nada conseguia escapar: as ciências, as artes ou as instituições sociais. Do mesmo modo, nada passa incólume pelo crivo de Cioran.


Cada homem deverá criar seu delírio privado, onde possa sonhar seus próprios sonhos - o que o aproxima do despertar. E, quando desperto, irá perceber a condição não-legislável do mundo, pois "a dor desintegra a matéria e a angústia, a alma". A fatalidade faz-se presente em todas as coisas e dela também não escapamos. Encontra-se aí a origem dos problemas da existência humana. Mas, por mais intensa que seja a angústia, por mais profunda que seja a dor sentida, sobrevive-se. Estranha e aleatória ironia. Tornamo-nos sobreviventes de nós mesmos.

Farsantes criadores de impurezas que a psicanálise teima em decantar. As impurezas permitem, contudo, o surgimento da curiosidade a respeito de nós mesmos. E assim tentamos preencher o vazio que precipita nossa queda no tempo. Situação inexorável que deixa claro a "inconveniência de se ter nascido". A morte esteia o pensar de Cioran. Não a morte em si, mas a obsessão em torno dela. Mania que permite suportar as noites insones, quando é sentido nas artérias o fluir do sangue que conduz a vida e também a morte. Antagonismo cruel do existir. E este mesmo sangue terá que correr de maneira abundante para alimentar os legados históricos vitoriosos: "As religiões contam em seu balanço mais crimes do que as mais sangrentas tiranias, e aqueles que a humanidade divinizou superam de longe os assassinos mais conscienciosos em sua sede de sangue" (1).


É provável que o leitor aprenda com Cioran a desfrutar de uma liberdade muito mais ampla em relação às idéias; liberdade semelhante àquela que é vivida por um ouvinte de música: "Se alguém deve tudo a Bach é sem dúvida Deus". Esta liberdade, e só ela, desvendaria o problema filosófico do infinito, já que o infinito estaria na sua própria essência. O eventual leitor, para desfrutar dessa liberdade proposta por Cioran, deve conseguir ultrapassar o momento avassalador, e até mesmo asfixiante, criado pelo romeno, na abordagem do mundo. Caso contrário, poderá o leitor abandonar o livro exclamando: "O horror. O horror". Os excessivamente pudicos e acadêmicos podem sentir um mal-estar com "Filosofia e Prostituição" (in Breviário da Decomposição). Neste texto é estabelecido um paralelo entre aquelas que praticam o "pirronismo do trottoir" e o filósofo. No universo da prostituição, tudo é aceito e nada é aceito. O que faz brotar com toda força de sua virulência, o conformismo e o cinismo. A negação, enfim, dos empreendimentos humanos. Os que aspiram fazer algo de útil ou pensam em fazê-lo, devem abandonar esse terreno para não caírem na "inanidade do ser" e no absurdo onde tudo se torna hostil: "Sua própria solidão, sua própria audácia, o absoluto opaco, os deuses inverificáveis e o nada manifesto".(3)

Aquele que não sabe refrear está condenado por transcender a realidade, e só lhe resta aceitar a condição à margem do socialmente estabelecido. Se esta condição conduz ao sofrimento, advém a tragédia. No entanto, aquele que não sofre por encontrar-se à margem, é um observador da farsa com a qual não compactua. Isto o transforma em um deus finito e miserável e, como tal, será execrado por ser apenas um epígono desiludido e estéril. Em tudo há uma certa insanidade, principalmente na aurora, quando o desespero da privação e uma certa sabedoria acompanham seu surgimento. Aí, então, passamos a acreditar que o desenrolar das horas irá trazer frutos pluriabertos às nossas bocas sequiosas. A noite vem e nos encontra sentados, sedentos e suados na mesma poltrona e a crise, como se fosse uma anêmona, silenciosamente se aproxima. Necessário se faz evitá-la. Só nos resta escrever ou "por isso escrevemos", como diz Cioran. Revoltamo-nos então em palavras contra nós mesmos e nossos semelhantes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário