domingo, 30 de julho de 2023

Texto maravilhoso de Hélio Pellegrino

 Carta a uma jovem poeta (por Hélio Pellegrino)

 "O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa" Hölderlin
 
No princípio é o sonho. E, depois dele - mas implicando-o, necessariamente -, é o contato, o contraste e o confronto com a estranheza das coisas. O movimento humano se faz da fantasia para a concretude do mundo. Temos que perder o macio inimaginável do sonho, sua diáfana gentileza de pés de lã, para ancorar no concreto. Temos de saltar de paraquedas, na direção da realidade. Torna-se indispensável, nesta hora, um aparelho minimamente capaz de amortecer o choque contra a terra: tranco fundador. É, porém, ilusório supor que tal passagem possa processar-se sem ruptura - e sem vertigem. Machado de Assis, do alto de sua ironia, garante que é melhor cair das nuvens do que de um terceiro andar. Não estou seguro de que este aforisma possa adequar-se, com propriedade, ao tema que examinamos. Os sonhos não são nuvens, mas a primeira pátria do homem. Cair deles é - literalmente - perder o paraíso, vicissitude com certeza mais dolorosa do que partir uma perna, após a queda de um terceiro pavimento.
O poeta, o ficcionista dão o salto o sonho para o signo compartilhado. Existe, fora de dúvida, um sofrimento na agonia da criação artística, na medida em que ela é um parto - e um nascimento. Pulamos do avião, abandonando o grande bojo narcísico pela aventura de recortar em palavras, imagens e metáforas aquilo que é nosso mistério original. Não obstante, na dor universal desse processo de objetivação, por cujo intermédio o ser humano se eventra, para conhecer-se, o artista fica com a melhor parte. Ele consegue construir um sonho - ou um voo - dirigido, cujo destino se consuma na obra de arte. O artista conquista e preserva, portanto, sua condição de fazendeiro do ar, permanecendo no território da semiótica - lugar onde o humano se embriaga da insustentável leveza do ser.
As coisas, contudo, se tornam mais torturadas - e tortuosas - quando se trabalha a própria matéria da vida, na tentativa de fazer dela um sonho dirigido. O concreto, fora de nós, é transcendente e, por isto mesmo, terrível. Para segurá-lo - e domá-lo - é preciso abrir a guarda ou, mais precisamente, a brecha por onde a morte entra. O real é o myterium tremendum, brasa viva que nos queima as mãos. O artista, com seu uniforme de amianto, converte as grandes queimadas da montanha em florestas de símbolos que ardem. As palavras promovem, com eficácia, a encantação do mundo. Elas nos ajudam a elucidar o real na medida em que, por afastar-nos dele, nos permite conhecê-lo. A linguagem, em última instância, tece os fios da pertinência ao cosmo. Ela é mediação, acolchoado de presenças ausentes, gentileza do Logos que nos poupa ao grande espanto. Já os místicos, desmesurados essenciais, se aplicam com indômita paixão à tarefa de encarar, no olho, a radiância do real. Eles invocam e convocam, na solidão da noite, o vazio - abolição da linguagem -, para albergar, no centro do vórtice espantoso, a presença inimaginavelmente esplêndida do real - diadema do poder de Deus.
O artista, na sua aventura criadora, não chega a tanto. Ele é mais modesto, enfrenta - sim - o real, mas simbolizado, mediado pelo signo. In hoc signo vinces: com este signo vencerás. O artista se encomenda aos poderes da linguagem, que aponta para o real, ao mesmo tempo que o oculta. O real é o impossível - diz Lacan numa estocada de mestre. Ele é silêncio, êxtase impronunciável, fornalha ardente da paixão de Deus, aterradora e esmagadora. O artista, espécie de santo de segunda mão, fica rasante à carnadura do real, aflorando-o sem deflorá-lo, A partir da proximidade ao coração selvagem da vida, transportado de amoroso espanto, ergue voo, através da linguagem, no sentido de anunciar, comemorar - e elucidar - a suprema dignidade do real.
O artista, pela palavra, dá notícia da realidade, fala de sua presença, representa-a e, com isto, empalidece - ou amortece - sua desocultação. O místico, ao contrário, pela brecha escancarada e vazia de sua liberdade, abre lugar ao relâmpago do ser, não corroído pela função simbolizadora da linguagem. A palavra é sempre, por um lado, defesa contra o real, defesa legítica - ou legítma defesa. Ela nos permite contemplar as explosões nucleares do Sol, mas com óculos escuros. Quem quiser não usá-los, nesta emergência, corre o risco de ficar cego. Foi, aliás, o que aconteceu a São Paulo, no caminho de Damasco. Ele ficou siderado e fulgurado pela luz da revelação do Real e, perdendo a visão, caiu - literalmente - do cavalo.
Lacan, sucessor da grandeza de Freud, desbravou tais questões com inigualável densidade. Ele nos mostra que, através da função simbolizadora, somos salvos da psicose - e da possibilidade do desastre psíquico. Nos casos de neurose, por exemplo, existe um relacionamento, no inconsciente, de conteúdos mentais já simbolizados ou representados. O neurótico embora possa assustar-se e, até mesmo, aterrorizar-se com seus sonhos, tem sempre o recurso de acordar deles abrindo os olhos, seja literalmente, seja de maneira metafórica, através de sua elucidação interpretativa. Os sonhos são sempre estruturados como linguagem. Eles representam o desejo inconsciente e, na pior das hipóteses, vão surgir à consciência como sintomas.
No caso das psicoses, o problema é estruturalmente diverso. O psicótico tem áreas de sua experiência psíquica que ele não simbolizou, nem recalcou, mas foracluiu, segundo a terminologia lacaniana. O recalque implica uma prévia atividade simbolizadora. Quando esta não existe, o material rejeitado aparece à consciência sob a forma real - não simbólica. A psicose, portanto, é uma impossibilidade de sonhar. Quem canta, seus males espanta - diz o velho brocardo. O sonho é, a seu modo, uma espécie de canção tecida de imagens, que nos salva do excesso de realidade. O psicótico, sem poder onírico, é soterrado por esse excesso e, sob seus escombros, carece de canto, sucumbe ao peso dos próprios males.
O artista - mestre no sonhar e no dizer - escapa esse duro infortúnio. Ele sonha e diz o seu sonho e, nesta medida, ao conferir-lhe o cânon apolíneo da beleza domada, conquista-o, sublima-o, resolve-o. O artista sonha de novo o seu sonho, quando o exprime, e, assim, consegue transformá-lo em canto geral. A arte é sonho dirigido, ofertado à comunhão dos homens, na medida em que paga imposto da palavra para ingressar no circuito do intercâmbio social. O artista, ao modelar o seu sonho, socializa-o, insere-o no mundo, rompe sua abastança autárquica - e narcísica. Arte é sonho compartilhado, comunicado, dialógico. Não resta dúvida , porém, que o artista, ao transpor seu sonho para a linguagem de todos, sofre aí o doloroso impacto da constrição a que o sujeita a ordem do simbólico. As palavras - e, de resto, quaisquer símbolos - são um código e uma álgebra. Elas operam a partir das leis do discurso, através de signos que se põem no lugar das coisas, sem presença delas. Toda arte, portanto, é tingida de ausência, e fala sempre de uma pátria perdida. Toda arte é exílio: canção do exílio. Os poetas - Gonçalves Dias, Baudelaire, Manuel Bandeira - não me deixam mentir.

sábado, 29 de julho de 2023

FAZ DE CONTA...

...sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul,
faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações,
faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos,
faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante,
faz de conta que amava e era amada,
faz de conta que não precisava de morrer de saudade,
faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus,...,
faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte,
faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio,
faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos,
faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos húmidos de gratidão,
faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta,
faz de conta que se descontraía o peito e a luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranquilas mortalidades,
faz de conta que ela não era lunar,
faz de conta que ela não estava chorando por dentro...

Clarice Lispector

ilustração de Gohar Harutyunyan


 

"Sempre acabamos adquirindo o rosto das nossas verdades..." 
 
Albert Camus
 
 
 
 
 
 
arte de George Underwood

Você sabia que o coração possui inteligência?
 
"Pesquisas científicas recentes sugerem que o coração pensa e que as suas células possuem memória."
 
"A energia eletromagnética gerada pelo coração é cerca de 60 vezes maior que a do cérebro e sua frequência é também cinco mil vezes mais forte se comparada com a frequência de energia cerebral."

O VALOR
DA(DÁ) SOLIDÃO
E SEU PREÇO.
 
VALORES VOLÁTEIS
 
Toda autenticidade é singular e seu tamanho é inversamente proporcional à pulverização de nossos casuísticos afetos, em trânsito por tantas impermanências.
 
A percepção da necessidade da busca de identidades estruturais que transcendam as algozes paredes culturais de normalidades impostas pela insana civilização talvez seja a única justificativa para os nossos ininterruptos esforços para Existir, buscando compreender o Ser através de contrastes do Não Ser.
 
Somos apenas fluídica Potência, cristalizando o ainda Imperceptível, retroalimentando-nos, nesse múltiplo banquete de aparências, encantados pelo canto de tantas sereias, numa espiral crescente de infinitas e desconhecidas possibilidades contidas em todo múltiplo Devir. A percepção dessa Consciência em trânsito cobra, de nossas Identidades, o pedágio das circunstancialidades, da impermanência, gerando valores de solidão.
 
A Consciência tem seu preço, a descoberta que o Valor da Singularidade de nossas Almas, com seus contrastes entre nossos fragmentos, agregados por nossos Caminhos, nossos Olhares, nossas Percepções, espera, permanentemente, ser lapidada. Lapidação, sinônimo de Existir. Que sejamos todos, bons ourives de nós mesmos.
 
Gildo Fonseca


 

"A humanidade tem dupla moral, uma que prega mas não pratica, outra que pratica mas não prega". Bertrand Russell

Levantar (ou tentar) é lutar para superar quaisquer densidades...


O Ser, em seus ininterruptos esforços para Existir, descobre o significado de valor, pelos custos de cada experiência em seu Caminho. Esse é o "preço" da Consciência, o pedágio da Criação. 
Simone de Beauvoir afirmava em "A velhice": "Inércia é que é sinônimo de morte, a lei da vida é mudar". Existe outro jeito??? 
Gildo Fonseca

As duas frases contidas na imagem tem profundos significados, em vários sentidos. Vale a pena refletir...

"A certeza é fatal. O que me encanta é a incerteza.
A neblina torna as coisas maravilhosas." 

Oscar Wilde.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

 Toda badalada nos fere. A última nos mata. Provérbio latino.

 O homem é um deus amarrado num corpo que apodrece. Pondé

quarta-feira, 19 de julho de 2023

A coisa percebida é obnubilada pela névoa de pretensiosas e voláteis certezas.

A Verdade anda nua porém, para nós,  vestida pelas fragmentadas percepções de nossos enlaces culturais.

Suportaríamos, cada um de nós, a nudez de nossas almas?

Gildo Fonseca.

terça-feira, 18 de julho de 2023

 



"Há um êxito, uma felicidade própria da argúcia, pois em uma centelha se vê vacilar a ordem linguística, e o sem-sentido é descoberto, em um instante, como capaz de fazer vacilar as significações mais estabelecidas, as significações da lei, que não é somente, que não é em primeiro lugar uma lei política, mas que também pode sê-lo.
Temos aqui um poder subversivo que vai além do estabelecimento de uma nova ordem. Comprovem que na argúcia, como também no lapso, o sujeito é sobrepassado por sua criação."
 
Jacques Alain-Miller, na conferência "O piropo: psicanálise e linguagem", de "Conferências Caraquenhas" (reunidas em "Percurso de Lacan - Uma introdução")

 

"Quanto mais abstrata for a verdade que queres ensinar, mais tens que seduzir os sentimentos a seu favor." 

Friedrich Nietzsche

AUTO SABOTAGEM: Sobre o Desejo de Fracassar
 
Em 1917, Sigmund Freud (1856 – 1939) chama a atenção para a forma de funcionar daquele que tenha vivido uma perda significativa em relação à algo do qual não tenha tido a chance de se desapegar emocionalmente o suficiente. Freud denomina esse quadro de melancolia. Por conta de certa relação de extrema amarração, estabelece um vínculo ambíguo com o outro, onde depende, mas deseja não depender. Idolatra o outro por depender dele, mas o odeia por desejar a independência. Por conta da culpa por odiar aquele do qual depende, o melancólico se vê como sendo desprovido de valor, e se sente alguém desprezível. “Vemos como nele uma parte do ego se coloca contra a outra, julga-a criticamente, e, por assim dizer, toma-a como seu objeto.” (Freud, 1917). O vínculo que vivera com o objeto perdido não pudera evoluir para formas mais nobres do amor e se mantivera num modelo de submissão.

sábado, 8 de julho de 2023

“Trinta raios convergentes, unidos ao meio, formam a roda, mas é seu vazio central que move o carro. O vaso é feito de argila, mas é o seu vazio que o torna útil. Abre-se portas e janelas nas paredes de uma casa, mas é seu vazio que a torna habitável.”

Lao Tse

"...Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva".
 
Essa frase, do filme O Caçador de Androides, lembra a finitude de todo evento, sempre sobrepujado por uma nova percepção no instante seguinte. Tudo é transitório e impermanente. Que possamos sorver, com toda intensidade, cada gota, de cada sensação pois viajamos por infinitos enigmas, verdadeiras galáxias de possibilidades e questionamentos, subjacentes a cada circunstância. Tudo morre, tudo nasce, em cada Instante. A finitude pode ser infinita em si mas nossa infinitude perceptiva transcende todos os limites. Gildo Fonseca.

O AR QUE RESPIRO
 
Incompletude, esse líquido amniótico onde pulsam nossas sinapses, nos contém e nos alimenta com seu banquete de incertezas, possibilidades e múltiplos caminhos e percepções. Quem poderá ao certo dizer para onde vai? Apenas espectadores ativos. A propulsora e inexorável transgressão da consciência de nossas próprias limitações flerta com o Desconhecido, com a matéria escura, com os buracos negros da consciência. O imponderável, protagonista no teatro do existir, nos desafia, permanentemente, na superação de nosso trágico estado de meros coadjuvantes no grande palco da Impermanência. Cada Instante é novo Ente. Contudo contidos, somos um Além, a ser auto descortinado. Somos o próprio fluxo da transcendência respirando cada vez que pisca o nosso Olhar, cada vez que pulsa o nosso coração. Gildo Fonseca.

 

"Não me arrependo de nada. Aquele que se arrepende do que fez é duplamente miserável". Spinoza

TRANSGRESSORES DO FUTURO PRESENTE.
CONDENADOS AO QUE HÁ, DEVIR...
 
 
 
O ato de perceber é um inexorável e sucessivo enquadrar-se. Em normas culturais, em fluídicos estados de pulverizadas compreensões da consciência, em voláteis entendimentos, estruturas, caixas, normas, formas e moldes.
 
A névoa da relatividade reina absoluta, escancara que somos meros coadjuvantes no grande palco da vida. O protagonismo do Imponderável Devir prevalece ante olhares estupefatos dos pretensiosos que sempre acreditaram saber o que aconteceria no momento seguinte do grande rio da Vida.
 
A cópula interativa, entre o que achamos e o que será, gera embriões que retroalimentam aquilo que achamos que somos, que temos ou que acreditamos entender num processo infinito de ilusão dinâmica, pão-ópio nosso de cada dia e sem o qual, enlouquecemos.
 
A opinião, o achismo, o pretenso compreender, o julgamento, são filhos de espasmos, de vãs tentativas de ancorarmos nossas decisões em portos, em pontos, em lastros que serão, à semelhança de ação dos buracos negros celestes, absorvidos, transformados, renomeados, reaprendidos em cada instante seguinte, após cada experiência de relacionamentos, seja com pessoas, coisas ou fatos.
 
Transcender é fluir nas ondas, tempestuosas ou calmas, de cada nova face que a Vida nos descortina em eterno banquete, onde a iguaria de cada interação sacia, provisoriamente a desejosa sede de nossas almas transgressoras.
 
Podemos moldar muitos vasos com o barro de nossas intenções mas, vinda do momento seguinte, essa argila também nos molda, lapidando, em cada novo Olhar, em cada percepção, a mutação intrínseca, do próprio processo de entendimento.
 
Sigamos, conscientes, sucumbindo momentaneamente à frase da esfinge, devorados, pois o próprio processo de decifrar será o fio de Ariadne que há de reconduzir-nos àquilo que Somos, por trás de todas as burcas, através de todas as buscas. E então, como dizia Clarice, “vamos ver quem devora quem”.
 
Gildo Fonseca.

terça-feira, 4 de julho de 2023

 ...a saída do cercado é a um só tempo estimulante e amedrontadora; que, uma vez do lado de fora, é doloroso para a criança perceber que não pode retornar; e que a vida é uma longa sequência de saídas de cercados, riscos e desafios novos e estimulantes.

Winnicott

 Somos todos míopes, exceto para dentro.

Só o sonho vê com o olhar.
Transeuntes eternos para nós mesmos,
não há paisagens senão o que somos.
Nada possuímos, porque nem a nós possuímos.
Nada temos porque nada somos.
Que mãos estenderei para que universo?
O universo não é meu:
sou eu.
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)


 

“O sabor da maçã está no contato da fruta com o palato e não na fruta em si. De forma semelhante a poesia está no encontro do poema com o leitor, não nas linhas de símbolos impressos nas páginas de um livro. O que é essencial é o ato estético, a emoção, a emoção quase física que vem com cada leitura”.
Jorge Luis Borges
Esse texto de Borges nos lembra que a essência do sabor da vida não está nas pessoas em si mas na Interação entre elas, no encontro das mesmas buscas, no deleite da percepção da amplitude e intensidade contidas em cada alma que encontramos ou reencontramos no Caminho. Somos a Soma de sinapses fluídicas, de tantas faces que compõem o Espelho onde construímos, todos, interativamente, uma pretensiosa âncora chamada Lucidez.
Gildo Fonseca.

domingo, 2 de julho de 2023

"O ego exige sucesso. Mas, como disse Clarice Lispector, numa carta a uma jovem que pretendia tornar-se escritora: 'Quando você fizer sucesso, fique contentinha, mas não contentona. E preciso ter sempre uma simples humildade, tanto na vida como na literatura'. Contentinha, mas não contentona: em quatro palavras, Clarice disse tudo, o que não é de admirar, em se tratando de uma grande escritora. É interessante, aliás, que tenha usado a expressão "contente", mas não "feliz". Não é a mesma coisa. Felicidade é uma coisa transcendente, imaterial. Contente é aquele que contém: sua carência foi preenchida com elogios, com tapinhas nas costas. No Brasil temos a expressão "o bloco dos contentes". Usa-se em geral para pessoas que, ligadas à administração pública, conseguem favores, privilégios, mordomias. O que as contenta vem de fora.
Literatura não é fonte de contentamento. Nem é coisa que possa ser feita pelo membro de um bloco. Ela é, essencialmente, um vício solitário. "

MOACYR SCLIAR - In: Prefácio a "Max e os Felinos".

("Smile', 1955 - Foto: Walter Chandigarh)

Compartilhado de Arspoetica_art

sábado, 1 de julho de 2023

A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.

Fernando Pessoa

 

Comp. de Artes & Poesias

Na singularidade de todo fragmento está contida a pluralidade de todos os possíveis. Tornar-Se é processo, cristalização de nossos berços, onde somos embalados por nossas fascinações, afetos e pretenso compreender. Como dizia Nietzsche: "não existem fatos, somente interpretações". Viva o Sentimento alucinógeno da Interpretação.

Gildo Fonseca.

Digerir a sucessão de seus fragmentos para tornar-Se "inteira" sacia fomes de alma... GF

Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada — então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma."
 
Toda compreensão súbita se parece muito com uma aguda incompreensão. Não. Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão“
 
Lispector, fragmento de Paixão Segundo GH