domingo, 12 de abril de 2020

Escuta!

"Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos
sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente.

- Escuta. Eu estava habituada somente a transcender.
Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado
minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa
porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia
inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe
que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro.

Mas descubro que não é sequer necessário ter esperança. É
muito mais grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigoso
e que deveria calar-me para mim mesma. Não se deve dizer que a
esperança não é necessária, pois isto poderia vir a se transformar,
já que sou fraca, em arma destruidora. E para ti mesmo, em arma
utilitária de destruição.

Eu poderia não entender e tu poderias não entender que
prescindir da esperança - na verdade significa ação, e hoje. Não,
não é destruidor, espera, deixa eu nos entender. Trata-se de
assunto proibido não porque é ruim mas porque nós nos
arriscamos.

Sei que se eu abandonar o que foi uma vida toda organizada
pela esperança, sei que abandonar tudo isso - em prol dessa coisa
mais ampla que é estar vivo - abandonar tudo isso dói como
separar-se de um filho ainda não nascido. A esperança é um filho
ainda não nascido, só prometido, e isso machuca."


Clarice Lispector

Comp. de Clarice, essa desconhecida.

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