sexta-feira, 5 de abril de 2019

DESASSOSSEGO

O afeto está sempre ligado àquilo que nos constitui como sujeitos desejantes em nossa relação com o outro semelhante, com o grande Outro, como lugar do significante e da representação do objeto a. A manifestação literária do afeto tocando todos estes pontos é como se tocasse o Real, que o poeta toma como se fosse a própria vida. Esta é a matéria-prima fundamental da poesia.
Escolhemos um fragmento ilustrativo. Tomemos Fernando Pessoa:

E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isso e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.”


A concentração de temas em um tempo que transforma o presente em angústia, torna-o insuportável e evanescente. O poeta frente à tentativa de encontrar um tempo compassado ao que sente. O desassossego de um prazer que é na verdade o gozo.

"O afeto no tempo" de Carlos Pinto Correa. Círculo Brasileiro de Psicanálise.

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