sábado, 25 de maio de 2019

A vida é queimar perguntas.
Não concebo uma obra isolada da vida. Não amo a criação isolada. Também não concebo o espírito isolado de si mesmo. Cada uma de minhas obras, cada um dos meus planos, cada uma das florações glaciares da minha alma interior goteja sobre mim.
Reconheço-me tanto numa carta escrita para explicar o estreitamento íntimo do meu ser e a castração insensata da minha vida, como num ensaio exterior a mim próprio, que me surja como uma gestação indiferente do meu espírito.
Sofro pelo espírito não estar na vida e pela vida não ser o espírito, sofro por causa do espírito-órgão, do espírito-tradução ou do espírito-intimidação das coisas para as fazer entrar no espírito.
Este livro, suspendo-o na vida, quero que seja mordido pelas coisas exteriores, e em primeiro lugar por todos os sobressaltos cortantes, todas as cintilações do meu eu por vir.
Todas estas páginas se arrastam como pedaços de gelo no espírito. Perdoe-se-me a minha liberdade absoluta. Recuso-me a estabelecer diferenças entre qualquer um dos momentos de mim mesmo. Não reconheço no espírito nenhum plano.
É preciso acabar com o espírito, tal como com a literatura. Afirmo que o espírito e a vida comunicam a todos os níveis. Gostaria de fazer um livro que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e os conduzisse onde nunca teriam consentido ir, uma porta simplesmente conectada com a realidade.
E isso é tão pouco para um prefácio de um livro, quanto, por exemplo, os poemas que o balizam ou a enumeração de todas as raivas do mal-estar.
Isto não é senão um pedaço de gelo mal digerido.

- Antonin Artaud, O Umbigo dos Limbos, in O Pesa-Nervos; 1991, pg.13-14

Comp. do FB, pg. Marcel Oliveira

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