sábado, 4 de maio de 2019

Adorável reflexão de Rainer Maria Rilke

"Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem numa tão indizível monotonia em cada caso; é também o medo de algum acontecimento novo, incalculável, diante do qual não nos sentimos bastante fortes. Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência. Se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança. Entretanto, quão mais humana aquela perigosa incerteza que faz os prisioneiros dos contos de Poe apalparem as formas de suas terríveis prisões e não desconhecerem os indizíveis horrores de sua moradia. Nós outros, aliás, não somos prisioneiros. Em redor de nós não há armadilhas e laços, nada que nos deva angustiar ou atormentar. Estamos colocados no meio da vida como no elemento que mais nos convém. Também, em conseqüência de uma adaptação milenar, tornamo-nos tão parecidos com ela que, graças a um feliz mimetismo, se permanecermos calados, quase não poderemos ser distinguidos de tudo que nos rodeia. Não temos motivos de desconfiar de nosso mundo, pois ele não nos é hostil. Havendo nele espantos, são os nossos; abismos, eles nos pertencem; perigos, devemos procurar amá-los. Se conseguirmos organizar a nossa vida segundo o princípio que aconselha agarrarmo-nos sempre ao difícil, o que nos parece muito estranho agora há de tornar-se o nosso bem mais familiar, mais fiel. Como esquecer os mitos antigos que se encontram no começo de cada povo: os dos dragões que num momento supremo se transformam em princesas? Talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas que aguardam apenas o momento de nos ver um dia belos e corajosos. Talvez todo horror, em última análise, não passe de um desamparo que implora o nosso auxílio."

Rainer Maria Rilke - Cartas a um jovem poeta
Comp. do FB, pg. Marcel Oliveira

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