sexta-feira, 7 de maio de 2021

Crônica de Célia Musill
 
A SOLIDÃO É UM ANIMAL ANTIGO
 
A solidão é um animal antigo, está presente como um fóssil, mesmo quando há camadas geológicas sobre ele. Há dias de festa e de multidão, há de dias de riso e de sapatos vermelhos. Mas chega o dia em que aquele animal se mexe, vagaroso como um paquiderme, pesado como a nuvem sobre a cruz, dolorido como a cicatriz que tem memória. E tão necessário que o embalamos como um bebê. Nestes dias, lembro-me de um poema de Bukowski:
 
OH SIM, há coisas piores do que estar só mas costuma levar décadas até que o percebamos
e frequentemente quando o conseguimos é demasiado tarde e nada pior do que ser demasiado tarde.
 
Para Bukowski, havia algum prazer em ficar só. Ele tinha aquele quarto vazio, entupido de papel e de bebida, para onde corriam as mulheres em noites mais solitárias ainda. Bukowski não lhes negava nada, deitava-se com elas como quem se deita para ver o sol, não diretamente sobre os olhos, mas de viés, na virada, de bruços, que é um modo de aplacar a solidão se divertindo.
 
Tenho amigos que também enchem a cara quando se sentem sós. Há muita vodca nos seus hálitos e alguns poemas que explodem como se pegassem carona em toda aquela combustão. Conheço outros que nunca sorriem nem se dão. Enfeitam o nariz com piercings e insígnias. Medalhas de honra à solidão mais completa, àquela que dedicamos a nós mesmos, dedilhando guitarras de onde saem rocks com ecos de gargalhadas. E isto basta.
Tenho ainda amigos que nunca estão sós. Frequentam os bares, são assíduos nas festas, não recusam nem casamento. Casam-se para ter companhia ou enfileiram amores como tampinhas de garrafas. Estes amigos nunca estão sós porque se recusam à solidão cultivando a mesma companhia por anos ou frequentando o apê de alguma mulher que não amam, mas que lhes oferece o pescoço e as nádegas, depois um papo insosso que eles não se obrigam a ouvir porque estão sempre caindo fora. Tenho também amigas extremamente solitárias que levam o fora, depois de compartilhar nádegas e pescoços.
 
Eu também me sinto sozinha, como não? E fico olhando a solidão como o animal que acorda de um sono profundo. Há ruídos, alguma preguiça, mas ele abre os olhos e me encara, geralmente aos domingos, quando o sol brilha até aquele momento fatídico que aborta a semana. Então, sei que serei mais uma, outra e outra vez, na continuidade do tempo, abrindo a porta, ganhando as ruas, tropeçando em conhecidos e desconhecidos, frequentando bares, enfileirando amores, colecionando tampinhas de garrafa, casando-me às vezes, deitando-me para ter companhia, dedilhando guitarras, escrevendo cartas, começando livros para dar conta do animal sob as camadas geológicas, aquele que embalamos como um bebê, sabendo que certas verdades não têm saída. Então escrevo, enquanto afago o bicho.
 
(Célia Musilli/ crônica publicada na Folha de Londrina)
 
Compartilhado de Marcel Oliveira

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