sexta-feira, 17 de março de 2023

Habitar e Salvar a Terra
 
Os mortais habitam à medida em que salvam a terra, tomando-se a palavra salvar em seu antigo sentido, ainda usado por Lessing. Salvar não diz apenas erradicar um perigo. Significa, na verdade: deixar alguma coisa livre em seu próprio vigor. Salvar a terra é mais do que explorá-la ou esgotá-la. Salvar a terra não é assenhorar-se da terra e nem tampouco submeter-se à terra, o que constitui um passo quase imediato para a exploração ilimitada.
 
Os mortais habitam à medida que acolhem o céu como céu. Habitam quando permitem ao sol e à lua a sua peregrinação, às estrelas a sua via, às estações dos anos as suas bênçãos e o seu rigor, sem fazer da noite dia e nem do dia uma agitação açulada. 
 
Os mortais habitam à medida em que aguardam os deuses como deuses. Esperando, oferecendo-lhes o inesperado. Aguardam o aceno de sua chegada sem deixar de reconhecer os sinais de suas errâncias. Não fazem de si mesmos deuses e não cultuam ídolos. No infortúnio, aguardam a fortuna então retraída. 
 
Os mortais habitam à medida que conduzem seu próprio vigor, sendo capazes da morte como morte, fazendo uso dessa capacidade com vistas a uma boa morte. 
 
Conduzir os mortais ao vigor essencial da morte não significa, de modo algum, ter por meta a morte, entendida como nada vazio; também não significa ofuscar o habitar através de um olhar rígido e cegamente obcecado pelo fim. 
 
Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os mortais, é assim que acontece propriamente o habitar.
 
HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. [Ensaios e Conferências]. Rio de Janeiro: Vozes, 2018, p. 130. - Obra de arte por Vincent Van Gogh, 1887.

Nenhum comentário:

Postar um comentário