sábado, 25 de março de 2023

Shakespeare, Kafka, Beckett. Contrastes...

“Se compararmos Shakespeare e Kafka, deixando de parte o grau de genialidade de cada um, e considerando ambos apenas opositores do sofrimento do homem e da alienação cósmica, é Kafka quem faz o relato mais intenso e completo. E, de fato, o julgamento pode estar correto, exatamente porque, para Kafka, o sentimento do mal não é contraposto ao sentimento da identidade pessoal. O mundo de Shakespeare, tanto quanto o de Kafka, é aquela cela de prisão que Pascal diz ser o mundo, e, da qual diariamente, os prisioneiros são levados para morrer; Shakespeare, não menos que Kafka, impõe-nos a irracionalidade cruel das contradições da vida humana, a história contada por um idiota, os deuses pueris que nos torturam, não para nos castigarem mas por esporte; e não menos que Kafka, Shakespeare se revolta contra o mau cheiro da prisão que é esse mundo, e nada lhe é mais característico do que sua imagística do aborrecimento. Mas na cela de Shakespeare, a companhia é muito melhor que a de Kafka; os capitães e reis, amantes e palhaços de Shakespeare são vivos e completos antes de morrer. Em Kafka, muito antes de ser uma sentença executada, muito antes mesmo de ser iniciado o maléfico processo legal, algo de terrível foi feito ao acusado. Todos sabemos o que é — foi despojado de tudo que az um homem exceto sua humanidade abstrata que, como seu esqueleto, nunca serve realmente a um homem. Ficou sem pais, lar, mulher, filhos, missão ou anseios, não tem qualquer ligação com o poder, a beleza, o amor, a inteligência, a coragem, a lealdade ou a fama, o orgulho que deles pode provir[...] O esforço de comunicar o que significa ser na ausência de tais seguranças parece caracterizar a obra de vários autores e artistas de nossa época. Vida, sem sentir-se vivo.
Com Samuel Beckett, por exemplo, penetra-se num mundo em que não há nenhum sentimento contraditório do eu em sua ‘sanidade e validez’ para mitigar o desespero, o terror e o tédio da existência. É dessa forma que os dois vagabundos que esperam Godot estão condenados a viver:
ESTRAGON: Sempre achamos alguma coisa, que nos dá a impressão de existirmos, não é, Didi?
VLADMIR: (com impaciência): Sim, sim, somos mágicos. Mas perseveremos no que decidimos, antes de esquecer. ”
 
R.D. Laing, O Eu Dividido

Nenhum comentário:

Postar um comentário